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domingo, 15 de setembro de 2013

Capítulo 7 - Sobre codinomes e gosma azul

- Você tem livros? – Aggi me pergunta enquanto descemos as escadas do Setor 3. Nos cinco minutos desde que fui relegada a ficar de babá e Aggi e Tom, ela já me interrogou sobre quase tudo em minha vida. Eu tive que usar todo o meu arsenal de repostas do tipo “sair pela tangente”.
Quantos anos você tem? Dezessete.
Você tem namorado? Não.
Você vai à escola? Não mais.
No que você trabalha? Com eletrônicos.
Como o seu cabelo ficou dessa cor? Sempre foi dessa cor.
Você gosta de histórias de princesa? Credo, nem pensar!
Qual a sua cor preferida? No momento, roxo.
Sério, a quantidade que o irmão dela não fala, ela consegue cobrir. Dez vezes mais.    
- Não – eu respondo – eles são inflamáveis. – e me concentro em descer as escadas, tentando não rolar para baixo até o refeitório, porque minha cabeça está girando, girando... Bom, a culpa deve ter sido minha, por achar que esse dia não tinha como piorar. Sempre pode piorar. Fato.
E tinha piorado muito no instante em que minha mãe pôs os seus pés embalados em salto alto (antiguidades raras, custaram uma fortuna) dentro do nosso compartimento. Quem estivesse assistindo, nunca diria que estava assistindo o reencontro de duas irmãs, mas sim de duas velhas inimigas de infância que costumavam puxar os cabelos uma da outra. Naquele momento, tenho que ser sincera, preferiria a companhia de um esquadrão do Arco.
- Arianna – ela disse friamente, depois de se recuperar do choque de encontrar a irmã em sua sala. Eu pude notar que ela estava apertando as unhas contras as palmas das mãos; suponho que era no intuito de evitar que ela fossem parar no rosto da irmã.
- Laura – Arianna respondeu, mas sei a frieza com que ouviu seu próprio nome. – Acho que você deve saber porque eu estou aqui.
- Não, não sei. Porque você não me lembra mesmo?
Arianna já estava pronta para responder, mas mudou de ideia e olhou em minha direção. Laura entendeu a deixa antes de mim, e logo já foi se dirigindo a mim, a voz um pouco mais doce que o habitual.
- Ellie, querida- ela disse. Querida! Essa eu nunca tinha ouvido na vida. –você poderia levar essas... crianças para dar um passeio? – ela disse crianças com a mesma entonação que se referiria a um rato, se bem que ratos e crianças existem em abundancia no Complexo, e minha mãe parece ter o mesmo tipo de carinho com os dois.
Eu queria protestar. Queria ficar lá e saber qual era a causa dessa confusão toda. Mas Laura consegue ser mais assustadora quando tenta ser minimamente mais afável. No fim até agradeci por sair dali.
E então logo eu estava rumando ao refeitório do Setor 3, acompanhada de duas crianças, uma sepucralmente quieta e outra que não sabia calar a boca. Aggi havia ficado animada em conhecer o resto do setor, mas Tom fez um protesto silencioso, se agarrando ao casaco da mãe. Porém, ela deve ter feito algum tipo de feitiço, pois bastou algumas poucas palavras sussurradas no ouvido dele para que ele cedesse e me acompanhasse.
E foi aí que começou o interrogatório.
- O que é “inflamável”? – Aggi me pergunta agora, me trazendo de volta à realidade. Cruzes! Ela parece uma metralhadora de perguntas.
- Que pega fogo.
- Ah, mas então eles deviam fazer uns que não pegam fogo.
Eu exalo todo o ar dos meus pulmões. Nunca fui muito chegada a crianças, e isso certamente não está ajudando.
- Não há mais árvores, não é? Não tem como fazer mais papel.
Eu pessoalmente nunca vi um livro na vida. Os que se salvaram depois do Cataclismo foram recolhidos pelo governo, perigo de incêndio, esse tipo de desculpa. Pra falar a verdade, eles são difíceis de achar até no mercado negro, e olha que eu já vi de tudo por lá. Nem sequer na escola os tínhamos, onde a maioria das lições tinham que ser decoradas oralmente.Nada disso nunca me pareceu estranho, mas ter uma pirralha de seis anos me interrogando por causa de livros com certeza é.
Sei que vou me arrepender disso, mas...
- Por que, você tem livros lá no Setor 4, é? – é a minha vez de fazer perguntas.
Aggi chega mais perto e fala mais baixo.
- Não conta pra ninguém, - ela diz, com um sorrisinho malicioso – Mas eu tenho um monte!
Ou ela está mentindo ou essa família é bem menos comum do que eu pensei... Bom, talvez esse passeio possa render algumas informações, afinal.
Eu já havia engatilhado um milhão de perguntas sobre a suposta biblioteca de Aggi, mas na hora de dispará-las me dei conta que estávamos já à frente das grandes portas duplas de aço do refeitório.
A essa hora o lugar já estava quase vazio, com um ou outro gato pingado no meio das grandes mesas cercadas de bancos de alumínio que compõe o salão cavernoso do refeitório. Apontei para uma mesa afastada e instrui a Aggi que me esperasse por lá. Ela pegou a mão de Tom, que não surpreendentemente, emitiu apenas silêncio. Nem seus passos faziam qualquer barulho. Ele parecia um fantasma assustado com o mundo dos vivos.
Há um balcão de metal e vidro em um dos cantos do refeitório. Dentro dele estão expostas toda a variedade de comida: proteína rosa, proteína amarela. E um mingau azul. Advinha o que é? Proteína. Quer dizer, a gente chama de proteína, mas na verdade é um PBN: Preparado Balanceado Nutricionalmente, composto de proteínas, carboidratos e a dose necessária de vitaminas.
Também chamamos às vezes gororoba.
A rosa é a mais cara porque é a mais doce, portanto o gosto é o menos pior. De qualquer jeito, é terrível. Bom, não é à toa que a maioria das pessoas aqui estão eternamente de mal com a vida, eu é que não queria ter que depender disso. Se bem que eu me forço a comer do mesmo jeito, sabe, para manter as aparências.
E o maior exemplo de estar de mal coma vida está bem na minha frente, empunhando uma concha como se empunhasse uma espada. Bom, aquela concha é de fato a arma dela. O nome dela é Harriet, e nos dez anos que a vejo servir comida aqui, ela nunca deu um sorriso. Ela tem uma verruga na bochecha esquerda de onde cresce um único e longo pelo preto. Ele é meio que uma caricatura de uma bruxa de historias infantis, só que essa aí serve um negócio intragável ao invés de viver em uma casa de doces.
Não há fila a essa hora, o que é uma vantagem. Agora a desvantagem: quando chego um pouco mais perto, noto que há apenas uma grande panela no balcão, e ela está cheio de uma papa azul. Ninguém merece o azul.
A velha Harriet deve ter notado a expressão de desdém no meu rosto, pois logo ouço a sua voz rouca ecoar nos meus ouvidos.
- Vai querer ou vai só ficar admirando?
- Três, - eu murmuro, quase inaudivelmente. Ela pega três tigelas e as enche sem cerimônia, enquanto eu tento evitar olhar em seus olhos, em sua verruga, ou no pelo da verruga...
Ela passa a bandeja com as tigelas por cima do balcão com um baque, e já está apontando uma arma na minha direção. Bom, não uma arma de verdade, mas uma leitora de códigos, e eu lhe estendo o meu pulso esquerdo, onde está a minha pulseira.
As pulseiras são como a sua identidade aqui no Complexo. Elas possuem informações sobre quem você é, identificam o Setor de onde você veio e são também a moeda corrente por aqui. É claro que existe uma moeda “paralela”, que chamamos de Ferro. Porque esse nome, eu não sei, já que as moedas são de Níquel.
A máquina faz um bipe quando lê as informações na minha pulseira, e a refeição está paga, e imediatamente eu já estou a caminho da mesa onde duas crianças me esperam.
                Coloco a bandeja com três tigelas de uma gosma turquesa na mesa, e me sento, Aggi e Tom estão sentados do outro lado da mesa. A menina pega uma das tigelas e oferece ao irmão, que não pareceu muito feliz ao ver a comida em sua frente.
- Ele não gosta muito da azul. – Aggi me explica.
- Desculpa, garoto, mas é só o que tinha. – eu digo para Tom. Ele não responde, nem parece reagir a nada do que eu faça ou diga. – Ele pode me escutar? – eu pergunto, dessa vez para a irmã dele.
- Ele escuta sim. Só não gosta de falar. – ela responde.
- Vocês já o levaram a um médico?
- Já, mas ele disse que não sabe qual o problema dele. Papai diz que vai sumir com o tempo, mas que até lá eu tenho que cuidar dele.
- Porque você é a mais velha.
- Não, eu sou a mais nova.
Acho que eu não devo ter parecido muito convencida, porque ela logo emendou:
- Mas só por sete minutos.
- Ah, vocês são gêmeos.
- É. Papai disse que nós somos especiais por causa disso.
De uma forma ou de outra, Aggi sempre consegue trazer à tona o assunte de seu pai. Talvez seja aí que eu deva investigar, ignorando a ironia de agora ser eu a fazer todas as perguntas.Me certifico que não há ninguém perto o suficiente para escutar a conversa. Não há, mas mesmo assim abaixo o tom de minha voz.
- E o seu pai, ele leu isso em um daqueles livros que você me falou?
Aggi engole uma colherada da proteína azul, e me olha nos fundo dos olhos.
- Não sei, mas ele mexe bastante nos livros.
- São livros sobre o que?
- Histórias.
- Histórias?
- É, histórias. Às vezes ele lê algumas para mim e o Tom antes de dormir. Ele diz que são todos de histórias.
- E que tipo de histórias?
- Sobre aventuras, princesas, unicórnios e bruxos do mal, esse tipo de coisa. Mas ele disse que é segredo,que eu não posso contar pra ninguém.
- Mas você está contando para mim.
Ela pareceu intrigada pela primeira vez. Talvez não tivesse feito a relação que o fato de guardar segredo envolvia não falar sobre ele em primeiro lugar.
- Mas você é confiável.
Esse com certeza é um adjetivo que eu nunca apliquei a mim mesma. Bom, talvez no sentido daquela velha camaradagem compulsória entre criminosos, mas eu não chamaria isso de uma confiança verdadeira.
- Como você sabe que eu sou confiável?
Aggi novamente prende o meu olhar, como se pudesse ver no fundo da minha alma. Definitivamente essa menina é assustadora.
- Eu só sei. Eu sempre sei. – ela diz, e volta a se concentrar na proteína. Ao lado dela, Tom apenas brinca com a colher no negocio, e pela primeira vez parece que ele está se divertindo. Bom, ele achou um uso bem melhor para o negocio azul do que come-lo, tenho que reconhecer. É aí que eu percebo que nem toquei na minha tigela, e imediatamente a puxo e forço uma colherada.
- E o seu pai? Qual é o nome dele? – eu pergunto a Aggi.
- Porque você quer saber?
- Bom, eu trabalho em uma eletrônica. Talvez eu o tenha visto na loja. Ele vai muito ao Mercado?
- Não, ele manda os amigos dele no lugar.
- Ele tem muitos amigos?
- Tem, mas ele é meio que um chefe deles.
- Hum,e como esses amigos o chamam?
- Faraday.
O nome não me é estranho, e por alguns momentos me perco na minha memória atrás do nome fugitivo. Onde eu já ouvi esse nome antes? Aliás, não um nome, mas um codinome, já que é óbvio que é um nome inventado usado pelos traficantes. Eles se acham muito refinados por usarem nomes de cientistas do passado.
E então tudo faz sentido.
Oh, com certeza Rob e eu teremos uma conversa muito interessante amanhã.


Capítulo 6 - Fantasmas de estrelas esquecidas

Felizmente o compartimento que divido com minha mãe está completamente vazio quando eu chego. Aposto todo o meu dinheiro (que não é assim tão pouco – ei, vocês achavam que eu roubava eletricidade de graça?) que ela aproveitou a confusão no Mercado para fugir do trabalho e dar uma escapada com o seu namorado... que eu nem sei mais quem é. Ela tem tantos que manter um registro mental de todos era muito esforço para nenhum resultado. Até hoje eu não entendo como ela conseguiu ter uma filha só. Não foi por falta de fazer, com certeza.
Há muito tempo de eu deixei de me importar com o que a minha mãe faz da vida dela, desde que não interfira na minha. Não que ela se importe muito com o que acontece na minha, afinal.
É um compartimento padrão do Setor 3. Paredes cinzas e levemente manchadas pela umidade e portas de aço, móveis de alumínio. A decoração desse lugar é uma gigantesca ode à cor cinza. À entrada há uma pequena sala com apenas uma mesa e cadeiras, e na perde oposta há as portas que levam aos dois quartos minúsculos e um banheiro que consegue ser menor ainda. Acomodações de luxo, de fato. Não queira saber como é no Setor 4, se bem que eu pessoalmente nunca vi.  
Ao contrário das casas no Velho Mundo, nós não temos cozinhas aqui, já que fazemos todas as refeições no refeitório de cada setor. Eu deveria ter ido lá mais cedo só para “bater o ponto”, mas com essa confusão toda eu simplesmente não tive ânimo para mais atuações. Além disso, por incrível que pareça, as refeições de proteína conseguem ter um gosto ainda pior a cada semana. Era de se pensar que desse para se acostumar, mas vai por mim, não dá para se acostumar com o gosto daquele negócio, mesmo comendo-o quase diariamente desde que nasci.
No centro da parede que está oposta as portas, está aquela que é a estrela da popularidade no Complexo. A televisão. Afinal, o que mais há para se fazer em um buraco além de estar comatosamente absorvido pela narrativa televisiva? Bom, o segundo esporte do Complexo é a fofoca, e depois o sexo. Nessa ordem. Mas é através dessa pequena janela para o novo mundo em que podemos nos esquecer de nossas miseráveis vidas. Na verdade, é a única coisa por aqui que lembra uma janela, já que as televisões são soldadas à parede em um buraco apenas um pouco maior que a sua caixa, fechado com mais uma placa de aço para evitar o temido roubo da eletricidade, como se alguém fosse estúpido o suficiente para tentar roubar em sua própria casa. Hum, talvez na casa dos outros... Não, não é uma ideia muito boa. Muitos alarmes, contadores, olhos alheios, coisa e tal.
Mas as televisões não são de graça, bom, nada aqui no Complexo é. Mas ninguém ousaria não ter uma, bom, ao menos aqui no Setor 3 é assim. Mas também não há uma grande disponibilidade delas, então as que estragam vão para lojas como a de Rob, eternamente recicladas assim como os clássicos que elas exibem.
Porém, eu nunca costumo assisti-las. Me dão fome.
Aquela estática que puxa os seus pelinhos do braço, sabe? Ótimo petisco.
Vou até o banheiro para tentar limpar um pouco da sujeira, e assim que me olho no espelho vejo o resultado da situação que eu consegui me meter mais cedo. Não machucou muito, mas há um pouquinho de sangue em minha testa no local em que a minha cabeça atingiu o chão. Posso ser resistente a queimaduras, mas parece que eu não sou nada invulnerável no departamento de “ser atirada ao chão por um agente babaca do Arco”. Abro a torneira e... surpresa! Não tem água. Um pulo rápido até os registros na parte de trás da porta do compartimento e posso contatar o motivo. Minha mãe, sempre altruísta e temperada, conseguiu acabar com a nossa cota de água. O que me deixa na difícil decisão entre passar quinze dias sem banho ou gastar todo o meu dinheiro para pagar a enorme multa para religar a água. Exalo todo o ar de meus pulmões. Eu simplesmente não tenho cabeça para lidar com isso agora.
Bom, já que qualquer limpeza está fora de questão, ao menos posso aproveitar o fato de estar sozinha em casa. Não que eu nãocostume estar, mas é que eu realmente aproveito quando estou. Debaixo da estreita estrutura de alumínio que eu chamo de cama, há uma pequena caixa de metal. Ela possui uma fechadura que um dia teve uma chave, mas há muito tempo ela já enferrujou, portanto, ela fica aberta mesmo. Bom, ela não contém nada de ilegal, nem sequer precioso, mas se um dia o Complexo ruísse, ficaria muito em dúvida entre salvar a minha pele e essa caixa. Pois o seu conteúdo não é só para os meus olhos; mas para a posteridade, se ela tiver a capacidade de entender a mensagem.
Remexo nos vários objetos antigos e encontro o que estou procurando. É um objeto cilíndrico, de metal, parecido com uma lanterna, com uma espécie de lâmpada na ponta. Mas é muito mais do que uma lanterna.
Com cuidado (afinal, é uma antiguidade!) eu retiro a tampa do compartimento que um dia abrigou as pilhas do aparelho, e coloco as pontas dos meus dedos nos contatos. É nesse momento que o meu mundo se acende.
A luz emerge da outra ponta, indo bater nas paredes cinzas do meu minúsculo quarto e no teto que as cobre. Mas não é qualquer luz, mas uma projeção. Nas minhas mãos eu tenho um pequeno projetor de mais de um século, e mesmo assim ele é capaz de projetar aos meus olhos o que talvez seja o único vislumbre da liberdade que jamais terei.
E elas dançam para mim no filme projetado. As galáxias, as estrela, os planetas. De todas as cores, as nébulas caminham preguiçosamente na imensidão. Elas chamam meu nome, e eu sei o nome delas de cor: Áries, Orion, o Cruzeiro do Sul. E olha, lá está Carina, como se nada tivesse acontecido, como se seu fantasma debochasse de nós. É claro que são apenas um lembrança esquecida; uma ilusão. Sei muito bem que, mesmo na remota possibilidade de eu um dia chegar à superfície, ainda assim elas estariam perdidas para mim. Talvez eu saiba o que esteja perdendo afinal, e isso dói. Mas parece que eu gosto de me torturar.
Eu me deito na cama e apenas contemplo, um olho aberto e o outro pesando.
Estou quase pegando no sono quando ouço uma batida nervosa na porta. Minha mente gira procurando e descartando suspeitos da identidade de um visitante à essa hora, e logo minha mente estaciona no Arco. Será que eles vieram por causa do que ocorreu mais cedo? Será que descobriram o que eu sou? Se bem que se eles soubessem que eu sou uma Supernova, eles nem iriam se dar ao trabalho de bater na porta. Eu ainda estou tentando decidir se abro a porta ou finjo que ninguém está quando o visitante misterioso volta a bater, com mais força ainda. Por fim decido me levantar e abrir a porta, apenas rezando para não ver nenhum uniforme cinza.
Felizmente não é o que eu encontro, se bem que eu teria me surpreendido bem menos se fosse.
Quando abro a porta, me deparo com uma versão bizarra de um universo paralelo de minha mãe. Ela tem os mesmos cabelos loiros e figura esguia, até a mesma altura que ela. Mas seus olhos são obviamente mais cansados, com olheiras profundas, e enquanto minha mãe tem os deslumbrantes cabelos longos arrumas em cachos calculadamente deslumbrantes, ela os tem amarrados em um rabo de cavalo baixo e simples. E... há algo como medo em seu olhar. Não, pior que isso, terror; um terror gelado e paralisante.
Em sua mão direita está agarrada uma menina pequena, de mais ou menos uns seis anos, muito parecida comigo nessa idade, exceto que os cabelos dela são muito mais cinzentos. Ela tem um brilho afiado no olhar, bem incomum para uma criança tão pequena, e isso a torna até um pouco assustadora. Já na mão direita da mulher está agarrado um menino, bom, e agarrado mesmo. Ele puxa mão dela e se esconde por trás de sua perna, como se a visão de mim fosse a equivalente de ver um bicho papão.
- Ellie? – A mulher pergunta, com incerteza e nervosismo na voz.
- Ahn, sim – eu digo meio perdida
- Eu não sei se você se lembra de mim, mas o meu nome é Arianna. Sou a irmã da Laura.
- Oh, claro – eu digo, fingindo que me lembro bem de quem ela é – minha mãe está sempre falando de você
- Então eu não acho que estamos falando da mesma pessoa. A minha irmã nunca ia desperdiçar cinco minutos da sua vida falando de mim.
Respiro um pouco aliviada. Ela deve ser mesmo irmã da minha mãe. Talvez eu me lembre vagamente de uma vez ou outra minha mãe citando de leve que tinha uma irmã quando ainda vivia no setor 4. Há uma vida atrás, ela ainda era apenas mais uma operária com um trabalho exaustivamente desagradável. Até que tudo mudou quando, não sei exatamente como, ela conseguiu abrir caminho até a cama de um dos Administradores, e então nove meses depois eu surgi ao mundo. Bastou apenas um pouco de chantagem (afinal seria uma boa fofoca um Administrador ter engravidado uma operária – e menor de idade ainda por cima!) e a passagem de minha mãe para o Setor 3 estava paga. Aparentemente esse benefício não foi estendido à sua família. Acho que ela nem sequer me levaria junto, mas aí seria estranho chantagear um político com uma filha sem nem saber por onde ela anda.
- Olha, me desculpe incomodar a essa hora, mas sua mãe está? É muito importante que eu fale com ela.
-Não, ela não está. Talvez se você voltar outra hora...
- NÃO! – ela quase grita, o nervosismo à flor da pele. Ela olha rapidamente para os dois lados do corredor. – Ellie, por favor, é muito importante! Se eu puder esperar ela aqui, juro não atrapalhar o que quer que você esteja fazendo.
Eu fico em cima do muro. Obviamente seria mais sábio dizer que não posso. Está na cara que ela está com um problema, e dos grandes, e eu já tenho problemas meus o suficiente para lidar por hoje, obrigada. Por outro lado... ela está com medo de algo, e ainda tem as crianças. OK, eu admito, eu tenho o coração um pouco mole.
Exalo o ar dos pulmões e cedo o espaço à porta, permitindo a entrada de Arianna e as duas crianças. Fecho a porta atrás deles e lhes ofereço as cadeiras. Eu fico em pé.
- Ellie, me desculpa aparecer desse jeito, mas confie em mim quando eu digo que é uma emergência.
- Tudo bem, - eu digo.- eu posso perguntar o motivo da sua... visita? Acho meio difícil que você tenha ficado com saudades da Laura.
Arianna dá uma risada, forçada e nervosa.
- Apenas alguns negócios antigos, - ela diz vagamente – Nada de mais.
- Hum- Já vi que ela não parece estar muito inclinada a me contar o motivo de sua visita, e talvez eu não queira saber mesmo. Mas a curiosidade é mais forte. Bom, eu sei que se eu contornar posso descobrir alguma coisa..
- Bom, eu acho que você não conhece essa dupla ainda – ela disse, acenando em direção às crianças – Essa é a Agatha e ele é o Thomas.
- Aggi! O papai me chama de Aggi, não Agatha! – exclama a menina. Arianna não pareceu muito feliz com o comentário, e lhe lançou um olhar reprovador. Hum, problemas em casa, não é? Posso puxar essa meada um pouquinho.
- E você? - Eu pergunto ao menino, que não fez som algum desde que chegou – Como você quer que eu te chame?
Ele não responde , nem sequer me olha nos olhos.
- Ele não fala – me explica Aggi. – mas pode chamar ele de Tom. O pai nos chama assim.
- Não fala? Mas por quê? – eu pergunto antes que possa segurar a língua. Suponho que não seja muito educado perguntar esse tipo de coisa. Não que eu tenha o costume de ser educada mesmo. Aggi já estava se preparando para responder, mas sua mãe a interrompe no ato.
- Ele simplesmente não fala. – seu tom demonstra que ela não quer demorar no assunto. Um silêncio constrangedor se abate sobre nós. Tento desviar o olhar, e logo noto as mãos de Arianna, que eu não havia notado antes pois estava escondidas pelas mangas do casaco. Elas são... azuis. Não como um Smurf, mas algo doentio e acinzentado. Aqui até o azul fica cinza. Tarde demais percebo que ela notou que eu estava encarando. Ela ergue as mãos para que eu possa ver melhor.
- Tanques de proteína – ela diz simplesmente. No setor 4 é onde vivem os operários que trabalham nas máquinas que produzem tudo o que nos permite viver no Complexo. E isso inclui desde reciclagem de dejetos até a manufatura das nossas roupas. As intragáveis refeições de proteína que temos que comer também são feitas lá, feitas por bactérias (não sei exatamente como é o processo, só sei que é feito por bactérias geneticamente modificadas). Aparentemente, não fazem nada bem para a pele.
É claro que as refeições de proteína não são o único alimento do Complexo. Existem algumas culturas hidropônicas então temos desde tomates até laranjas às vezes, e até há laboratórios que fazem carne cultivada. Mas é claro que esse tipo de alimento não está disponível sempre, sendo reservado apenas para ocasiões especiais como o Dia da União, por exemplo. Se bem que há sempre murmúrios contando que no Setor 2, onde vivem as pessoas mais importantes do Complexo e as famílias dos Administradores, esses dias são bem mais abundantes. Tipo, quase sempre. Mas é claro, o Complexo adora um boato.
- Vocês não tem luvas lá?
- Tínhamos, até uns dez anos atrás. Mas elas acabaram e os Administradores não acharam que a cor da pele do pessoal era tão importante assim. De qualquer jeito, em uns seis meses sai quase tudo. É claro, se você parar de mexer nos tanques.- havia uma nota de tristeza em meio ao seu tom irônico que me fez me sentir mal por todas as vezes que reclamei do Setor 3. Ela abriu a boca para dizer mais algum coisa, mas o que quer que ela fosse dizer acabou ficando perdido no denso ar daquela pequena sala.

Me sobressalto ao ouvir os raspar das chaves no mecanismo da fechadura da porta, que ecoam pelo aço, gritando um lamento metálico. Minha mãe chegou mais cedo do que eu esperava. E então a porta se abre, e pela primeira vez em muitos anos vejo surpresa nos olhos maquiados de minha mãe. Aliás, um bocado dela. E não é uma surpresa boa, ao que aparenta.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Capítulo 5 - Uma estrela tem que saber atuar

Não que fosse o suficiente para estragar o meu dia, mas não posso evitar de ficar para baixo. Rob sabe que não pode ficar me dizendo esse tipo de coisa. Eu ri, fiz piada, mas foi para encerrar o assunto de vez, porque eu não queria ter essa discussão com ele pela milionésima vez. O isolamento pra mim não é opcional. Eu estou constantemente assombrada pelo risco de ser a qualquer momento levada pelo Arco, e ter mais gente perto de mim significa mais gente que pode entregar o meu segredo.
E nem vou falar de outros Supernovas. Eu prefiro manter minha distância deles. Aliás, por mais que eu critique minha mãe, se não fosse pelo bem sucedido golpe da barriga que ela aplicou em um dos Administradores, provavelmente eu estaria no Setor 4, junto com noventa e nove por cento dos Filhos da Supernova do Complexo, talvez me prostituindo por algumas pilhas como muitas Supernovas jovens acabam fazendo.
Quando chega a noite, me despeço de Rob e começo a minha jornada pelo Mercado para chegar ao Setor 3, enquanto ele permanece para terminar de fechar a loja. Não sei o que as pessoas do mundo antigo iriam achar do ridículo substituto que chamamos aqui de noite. Naquela época, a noite era quando o sol sumia, e o céu ficava escuro e as estrelas e a lua assumiam o seu posto para vigiar a humanidade. Aqui, a “noite” é quando as luzes ficam dez por cento mais fracas e algumas poucas atividades não essenciais são interrompidas até o outro “dia”.
Mas, para quase todos nós é tudo o que conhecemos. Eu nunca senti o sol tocar a minha pele, nem nunca vi as estrelas a não ser em meus sonhos.  Nunca saberemos o que estamos perdendo. Talvez seja melhor assim.
Ao me aproximar do chão do mercado, começo a notar uma movimentação um pouco além do normal. A essa hora, a maioria dos vendedores que habitam o fundo do grande átrio que atravessa os vários níveis do Mercado já estariam terminando de recolher suas quinquilharias à venda e estariam rumando para seus respectivos compartimento. Mas não hoje.
Há uma tensão velada no ar, a preocupação estampada em cada rosto que cruza com o meu. Ouço algumas pessoas sussurrando umas com as outra, e aqui e ali capto uma palavra solta. Arco, verificação, queimando.
Tento me erguer por cima de uma aglomeração para poder ver o que está acontecendo, e posso identificar alguns uniformes cinza-chumbo por entre a multidão. Meu sangue gela. Eu já tinha conseguido escapar de verificações aleatórias antes, mas em nenhuma delas eu tinha me alimentado recentemente, nem em uma quantidade tão grande quanto a que eu absorvi hoje. Me pergunto se a minha travessura com o alarme de incêndio mais cedo tem alguma coisa a ver. Que droga Rob, bela hora para estar certo!
No centro, posso ver que há alguns agentes aplicando o teste Kriston nas pessoas, que formaram uma espécie bizarra de fila em volta deles. Parte dos portões que levam ao Setor 3, mais alguns agentes estão de guarda para apenas deixar passar quem passou pelo teste. Minha primeira reação é tentar voltar para a loja e esperar que eles desistam por essa noite. Mas logo vejo que há mais agentes vigiando o lugar por onde entrei, e se eu voltar agora vai parecer muito suspeito. Eu estou encurralada, e eu não tenho certeza se consigo simular uma queimadura hoje.
Mas eu sempre tenho mais uma carta na manga.
Me esgueiro por entre a multidão e a passos centos me aproximo da saída para o Setor 3. As pessoas em volta da saída estão nervosas, e há tanta tensão no ar que é quase como se eu pudesse sentir a estática gerada por ela. Por mais que muita gente apoie a perseguição implacável aos Supernovas, todos odeiam quando isso interfere em suas rotinas.
- VOCÊS NÃO TEM O DIREITO DE NOS PRENDER AQUI! – eu ouço uma voz irritada entoar do lado esquerdo da saída.
Uma mulher alta e magra e um homem mais baixo estão em uma discussão acalorada com um dos agentes, e pela cara dele ele parece que está perdendo, a julgar pela falta de cor em seu rosto. Um agente que está do lado direito vai em socorro ao colega, deixando apenas mais um que está um pouco mais afastado para vigiar esse lado. É a minha deixa. Me esgueiro por meio das pessoas e tento me aproximar de onde ficam as grades dos portões. Felizmente, o agente que deixou seu posto deixou uma das passagens entreaberta, provavelmente confiando que ninguém teria coragem de desafiar o todo-poderoso Arco. A mulher da discussão obviamente não pensa assim.
De fininho, vou me esgueirando em meio à pessoas, e logo já posso ver a abertura bem de perto. Só mais um pouquinho...
- Onde é que a senhorita pensa que vai? – me pergunta um dos agentes, colocando braço na minha frente, bloqueando o meu caminho.
Meu sangue gela. Eu poderia correr, poderia atacá-lo. Nunca tentei, mas sei que um choque bem dado pode parar o coração de um homem em uma fração de segundo. Todavia, qualquer uma dessas opções significa entregar a minha situação, e por mais que eu consiga escapar do Mercado, jamais poderia escapar do Complexo. Anos de um disfarce cuidadoso iriam para o lixo em apenas um instante. Ao invés disso, resolvo usar a segunda melhor arma no meu arsenal.
- Mas senhor, eu preciso muito chegar logo ao Setor 3, é muito importante.
- E que grande importância seria essa, posso saber?
Com um pouco de esforço, tento conjurar novamente as lágrimas em meus olhos. Há uma tarja presa na lapela do Agente que diz que o nome dele é Tyson. Ele tem três vezes o meu peso, e pelo menos vez e meia minha altura. O rosto é redondo e rude, apesar de não ser muito velho, já exala autoridade, e não no bom sentido. Espero que não seja tão esperto quanto é assustador.
- Não posso dizer – digo em meio a um soluço engasgado.
Ele me olha de cima, a irritação em seus olhos.
- Não pode ou não quer? Não me interessa se a sua avó esteja pegando fogo, todos tem que passar pelo teste para poderem deixar o Mercado. – ele diz, apontando para o outro aglomerado de pessoas comuns e Agentes no centro do Mercado.
Incentivo as lágrimas mais um pouco e continuo.
- Mas eu não posso ficar aqui! – Enterro o rosto nas mãos e começo a chorar um pouco mais alto – Ele disse que a criança não era dele! Mas como, eu nunca fiquei com mais ninguém! Ele me disse coisas horríveis! – Choro mais alto ainda, para que todos os que estão em volta ouçam. Parece que está funcionando, pois a mulher irritada de antes parece ter se calado – Se eu encontrar com ele aqui, eu não sei se vou suportar!
- Deixa a moça ir! – ouço alguém gritar, mas é um apelo fraco e distante. Ao contrário do Agente que eu tinha encontrado mais cedo, esse não ficou nem um pouco movido com a minha história. Na verdade, acho que passou e me desprezar um pouco mais.
Meu conto não é nada aleatório. Eu escolhi essa encenação porque é uma cena que justamente ocorre muito aqui no Complexo. Pelo que eu conheço do mundo antigo, naquele tempo as pessoas escolhiam quantos filhos queriam ter, e não eram muitos. Mas como a humanidade foi drasticamente reduzida, foi decidido que todo o tipo de controle de natalidade fosse proibido. É por isso que há poucas mulheres no Arco e em outros cargos mais importantes: nós não passamos de reprodutoras, destinadas a repovoar a Terra. O que eu não entendo é se ainda temos uma Terra para repovoar. Não há nada lá fora, e o espaço do Complexo não parece aumentar.
De qualquer maneira, é como se fossemos incentivados a nos reproduzir, o que acaba gerando novelas como a que eu estou simulando.
As pessoas formaram um círculo em nossa volta, e eu faço um espetáculo de limpar as lágrimas de crocodilo do meu rosto. O agente que tinha deixado seu posto, voltou agora para averiguar a situação do outro colega.
Se o agente Tyson, com quem eu tinha falado até então, me olhava como se eu fosse uma barata que ele estivesse prestes a esmagar com a sua bota, o outro parecia... bom, nem tenho uma analogia decente para o jeito que ele me olhava. Se eu achei que já tinha recebido um olhar com mais gelo que a aquele na vida, com certeza eu não lembro. Era mais que indiferença, era mais para um ódio frio mesmo, desprezo, nojo, tudo junto. Ag. Roman era o que estava escrito no uniforme dele.
Na verdade, se a situação fosse outra, tipo se ele não fosse um maldito agente do Arco, talvez, apenas talvez eu o achasse até bem decente. Ele não devia ter muito mais de vinte e poucos, os olhos verdes e o cabelo castanho claro daquele tipo que dá vontade de passar as mãos o dia inteiro... Para de frescura, Ellie! Tenho que repreender a mim mesma por ficar pensando bobagens em uma hora tão despropícia.
- Não me interessa em que tipo de problemas a senhorita se meteu – o agente Roman disse, a voz como aço afiado – Vai ter que esperar junto com todo o resto.
E então ele me segura pelo braço e me empurra, mas com muita força, e eu vou de encontro ao chão. Não lembro exatamente como fui parar ali, só sei que sinto uma dor terrível em minha testa, minha cabeça está latejando. Sinto um conjunto de mãos tentando me reerguer, e aos poucos começo a identificar várias vozes em uma discussão acalorada.
- Que tipo de gente horrível você é. - Alguém dizia – jogando uma moça, grávida ainda, no chão desse jeito!
-Isso é o que ela diz – o agente Tyson diz.
- Não interessa o que ela diz ou não diz! – me viro, e vejo que a voz pertence à mulher que estava discutindo antes.- Vocês do Arco se acham os deuses por aqui, que podem fazer o que quiserem, mas vocês já foram longe demais. Essa menina tem cara de um maldito Supernova para vocês? Ela só estava desesperada, e vocês a agridem como covardes.
- E os nossos direitos? – diz o homem que a acompanhava, provavelmente seu marido. – Eu sou amigo pessoal do Administrador Johnson, e ele não vai ficar nada feliz quando ficar sabendo do modo como estamos sendo tratados!
Eu não acho que o Administrador Johnson, ou qualquer pessoa do Setor 1 dê qualquer atenção ao modo como as pessoas do Setor 3 são ou não são tratadas, mas é bom ouvir alguém em minha defesa.
Várias vozes se juntam em coro à voz do senhor que estava me defendendo, e logo um tumulto se forma perto da saída. As pessoas começam a gritar e empurrar, sem controle, e eu sinto sendo esmagada em meio a todos esses corpos enfurecidos. Nunca tinha visto tantas pessoas enfrentarem o Arco dessa maneira. Nunca sequer achei que fosse possível. Se eles soubessem que estão defendendo uma Filha da Supernova, uma vil criminosa como a maioria deles acreditam...
Pelo canto do olho vejo um agente do Arco mais velho, os cabelos braços achando espaço em meio aos negro,s se aproximando. Pelas insígnias no uniforme, suponho que ele seja um dos comandantes, e ele cochicha algo para o agente Tyson.  Ele não parece nada feliz, e chama o agente Roman para junto dele e o comandante lhe dirige duas palavras ríspidas. O agente Roman não pareceu nada feliz de ter sido repreendido por minha causa, e sai dali batendo os pés no concreto do Chão do Mercado. Os outros agentes que estava próximos abrem caminho pela multidão, e logo depois as saídas são desobstruídas.
Assim que ouço os som das dobradiças se abrindo, sinto os braços das pessoas que estavam me apoiando começarem a se mover e eu vou junto com eles, e logo já estamos atravessando o túnel que leva ao setor 3.
- Oh, querida, sinto muito, esses malditos Cinzas são um brutamontes mesmo. Você tem certeza que está bem mesmo?
- Tenho – eu digo, meio sem graça. Essas pessoas se arriscaram muito ao me defender, mas não gostaria de estar aqui se eles soubessem que a minha condição é de mentira – Obrigada- eu digo, meio sem graça e louca para sair correndo dali.
- Eu e o George aqui já estamos cheios desses caras, se não fossem os Filhos da Supernova, bem que a gente poderia passar sem eles! – ela olha para os lados – Em que nível você mora, querida? Talvez a gente possa te acompanhar até lá.
- Eu moro no nível 12 – eu minto. – Mas não é necessário não, logo eu vou ficar bem.
Ela pareceu um pouco decepcionada, até demais para o meu gosto.
- Bom, de qualquer jeito acho que você deveria ir até o refeitório ver se consegue um punhado de gelo pra a sua testa, acho que vai ficar bem roxo! – eu assinto, tentando terminar o assunto, mas a mulher não parece estar disposta a parar de falar – Bom, se você precisar de qualquer coisa ou se esses Cinzas te incomodarem de novo, vá até o nível 25 e pergunte pela Janet ou pelo George.
- Claro! – eu digo tentando fazer parecer que é exatamente isso que eu vou fazer. Até parece. – Minha mãe deve estar procurada.
- Oh, claro queridinha, e eu aqui lhe prendendo – Janet respondeu – Mas tome cuidado!
Eu assenti e já fui tomando caminho antes que ela quisesse continuar a conversa.
Durante o resto do meu trajeto até o meu compartimento, não consigo deixar de estremecer toda a vez que lembro do que acabou de ocorrer. Eu estive muito, mas muito mesmo perto de der descoberta. Se a aquele agente não tivesse me empurrado e as pessoas tivessem iniciado um tumulto, inevitavelmente agora eu teria falhado no teste Kriston e já estaria a meio caminho do Setor 7, provavelmente já a caminho do lugar para onde todos os Supernovas vão, e eu tenho certeza que não é nem um pouco agradável por lá.


Trust no one


Capítulo 4 - Não confie em ninguém

Biologia dos Filhos da Supernova para iniciantes:
Uma aula por mim, Professora Ellie! (Sintam-se honrados)
Não se sabe exatamente que mudanças genéticas ou ambientais fazem com que uma pessoa aparentemente normal se torne um Filho da Supernova. No inicio, acreditava-se que era uma mutação genética inata. Porem, logo notaram-se casos em que todos os sintomas típicos dessa “mutação” apareceram até dez a vinte anos após o nascimento, e, nesse meio tempo, o sujeito em questão não apresentar nenhum comportamento que não seja completamente humano.
Já em relação a suas, digamos, “habilidades e necessidades”, os estudos conduzidos já chegaram a uma série de conclusões. Apesar de muitas peculiaridades ainda serem um mistério, a física em geral sobre como seus corpos funcionam já foi parcialmente desvendada. Antes dos Supernovas, se tinha conhecimento de quatro estados da matéria: sólido, líquido, gasoso e plasma (quando um gás em altas temperaturas se torna ionizado). Mas, com o Cataclismo, se descobriu um quinto estado da matéria, em muito semelhante ao plasma em suas características iônicas, energéticas e magnéticas, contudo, sem ser necessário o aquecimento a altas temperaturas. Esse quinto estado, foi constatado também, só sem manifesta em origem biológica, originado diretamente de glândulas especiais no corpo dos Supernovas.
Esse estado foi posteriormente chamado de Chi, em referência ao nome dado a energia vital na cultura chinesa. Apesar dos esforços, jamais foi possível sintetizar o Chi em laboratório, nem mesmo extrair as glândula que o produzem, pois essas se desintegram no momento em que são retiradas do organismo. Uma das propriedades mais interessantes do Chi é como ele pode ser controlado facilmente pelo Supernova que o possui, desde que haja um mínimo de treinamento.
O Chi possui uma alta demanda energética para ser criado e mantido. Por isso os Supernovas precisam de grandes quantidades de energia para se manterem vivos. Eles podem ingerir, digerir e metabolizar alimentos orgânicos, porém eles não tem a capacidade de fornecer a demanda energética do metabolismo basal de um Supernova, que pode superar as cem mil calorias diárias. Os Filhos da Supernova geralmente demonstram preferência por consumir eletricidade, mas podem também se alimentar de vários tipos de radiação, inclusive, com algum treinamento, de luz. Quando se alimentam de uma alta dose. A área usada no contato geralmente adquire uma luminosidade cuja cor varia de acordo com a carga empregada. Inclusive essa luminosidade pode muitas vezes entregar o Supernova fugitivo.
A maioria dos testes aplicados pelo Arco para testar se uma pessoa é um Supernova pode ser facilmente manipulado se o sujeito testado tiver pleno controle de seu Chi. Testes de magnetismo e de potencial elétrico são regularmente aplicados, mas perdem sua eficácia pois tem de ser aplicados em baixas cargas para que o teste seja considerado seguro (um teste efetivo – que não pode ser enganado-  geralmente leva humanos comuns a óbito).
O mais famigerado teste, também, pode ser engando. O Chi, ao absorver a energia que é o alimento do Supernova, também protege o seu corpo dos efeitos nocivos desta. Pois assim, apesar de poder absorver cargas elétricas altíssimas, não há qualquer dano visível em sua pele (queimaduras são o mínimo de se esperar de um ser humano). O teste Kriston aplicado em todo cidadão do Complexo no nascimento e em outras ocasiões aleatórias durante o decorrer de sua vida, consiste em justamente criar essa queimadura que pode ser exposta como um símbolo de humanidade por aqueles que a possuem. Porém, esse teste também é falível. Com um bom controle do Chi, é possível desviá-lo da área a ser queimada tempo o suficiente para deixar a pele sem qualquer proteção. Porém, é ainda o teste mais confiável, pois o engodo só funciona em um Supernova bem treinado que não tenha se alimentado por um longo período de tempo. Essa é a razão das aplicações aleatórias do teste.
(Viu? Depois dizem que a Ellie aqui não presta atenção nas aulas! Não da escola é claro. Aquele eram apenas um sonífero com aplicação de seis horas.)

Reprodução dos Filhos da Supernova:
Errr... próximo assunto por favor!

Psicologia dos Filhos da Supernova:
Resumindo em uma sentença:
Hum, é um negocio complicado! Tudo o que eu sei é: não confie em um filho da Supernova. Bom, eu sou um deles, e eu não sou confiável. Mas de longe eu sou a “menos pior”, por assim dizer. Toda essa perseguição, paranoia e fome pode deixa-los, errr... meio malucos. Doidos de pedra. Eles são conhecidos por serem criaturas impulsivas e dadas a seus instintos primitivos, que pouco dão ouvidos à razão. Apesar de o consumo excessivo de energia causar-lhes o envelhecimento precoce e até a morte, se fosse lhes dada uma fonte ilimitada de eletricidade, um Supernova costuma absorver energia até a morte. Falando em morte, bom, se um deles quer lhe fazer algum mal (costumeiramente fatal), para ele basta apenas um toque, e se um supernova está determinado a mata-lo, pouco há a se fazer se a pessoa não possuir o equipamento especial em poder do Arco.
Bom, eu gostaria de poder lhes dizer que isso não é verdade. Mas pelo pouco que vi, os Supernovas podem ser bem violentos. Então, lembre bem da regra: não confie no Arco, não confie nos Supernovas. Não confie em ninguém.

O resto, só Freud em seu caixão explica!

Capítulo 3 - Pelo preço certo

- Por favor, não me diga que foi você que fez toda a área B ser evacuada! – Foi a primeira coisa que Rob me disse assim que voltei à loja. A cara de quem comeu uma porção de proteína que passou e muito do ponto de ser aceitável denotava o seu tom, dava para notar que as suas orelhas estavam levemente coradas de raiva. Talvez o alarme de incêndio não tenha sido uma ideia tão boa assim.
- Ah, dá um tempo, - respondi, tentando parecer mais despreocupada do que realmente estava. – Esses alarmes tão tocando o tempo todo! Até parece que ia aparecer todo o Setor 7 aqui por isso.
Isso era só meia verdade, porque parecia que metade do Arco veio mesmo para o Mercado. Eles pareciam estar interrogando os funcionários da área B antes que voltassem. Um agente até me parou, mas eu já estava com a história na ponta da língua da tragédia que foi quando eu, uma pobre garota apaixonada do Setor 3 foi até lá para contar ao namorado que esperava um rebento de sua relação, mas ele não ficou tão feliz quando descobriu quanto eu gostaria, e me escondi no banheiro para chorar, e fiquei presa por causa do alarme. Até agarrei o braço dele e chorei histericamente, até que o agente ficou extremamente constrangido e me deixou ir.
Pode ser até falta de modéstia, mas se aqui não assistíssemos apenas a filmes de oitenta anos atrás, reprisados à exaustão, bem que eu poderia me dar bem nesse negócio de ser atriz.
Em outro momento, Rob teria rido muito da minha atuação, mas algo me diz que o clima não está para historias engraçadas.
No lugar disso, passo pela bancada da frente da loja, onde Rob estava imerso em uma placa de circuitos de uma televisão de tubo praticamente jurássica e vou até o fundo da loja e abro a minha mochila. Retiro a bateria e a ergo no ar, sacudindo-a como se fosse um troféu. Meu chefe não pôde evitar de que um pequeno sorriso se instale no canto de sua boca, provavelmente imaginando quanto dinheiro minha pequena excursão vai render. No segundo, seguinte, no entanto, o sorriso dele azeda.
- Ellie, teu cérebro derreteu, é? Esconde esse negócio! – ele me diz, meio sussurrando, meio dando sermão. Só o fato de ter uma bateria, ainda mais uma desse tamanho, não é só ilegal, mas como valiosa. Muita gente cortaria sua garganta sem pensar duas vezes para pôr as mãos nela. Por outro lado, a bateria foi inteligentemente disfarçada de uma caixa-cofre, que mesmo que atraia cobiça, ao menos ainda parece estar dentro da lei.
Não consigo evitar de rir da cara que ele fez.
- Sossega! Eles nem me viram... Você tá começando a ficar paranoico, hein? – eu disse, enquanto me sentava no banco perto da bancada, meu diafragma já ardendo do esforço.
- Um pouco de paranoia ia ser um bom remédio pra essa tua arrogância. – ele me respondeu, sério. Será que eu notei um tom a mais de preocupação em sua voz? Claro, mais preocupação de ser pego em suas “atividades” do que comigo. - Se o Arco aparecer aqui na loja, eu não ia demorar dois segundos pra te vender e toda tua família se isso for salvar o meu pescoço.
- Família? Por acaso você tá falando da minha mãe? Pelo preço certo eu mesma vendo ela, faço até um bom desconto! – Pronto, venci. Com essa última ele não pode resistir e teve que rir junto comigo. Já animamos muita horas em que a loja estava parada contando histórias nada lisonjeiras sobre a minha mãe. Rob trabalhou por muitos anos no mesmo bar que ela, e com a, digamos, personalidade que ela tem, nunca fez muitos amigos entre aqueles que ela não podia dominar com um simples vislumbre de seu decote.
Porém, não durou muito tempo. Com a mesma velocidade em que saiu, a sombra em seu rosto retornou.
- Ellie, eu to falando sério. Você trabalha comigo há o que? Quatro anos?
Balancei a cabeça para concordar. Quatro anos atrás, Rob tinha me encontrado vagando pelo Mercado, tentando da forma mais patética possível encontrar um traficante de energia. Do jeito que eu estava, com o rosto encovado e os olhos vermelhos, era só questão de tempo até o Arco me encontrar. Na verdade eu tive muita sorte.
Naquela época, eu era trinta centímetros mais baixa e bem menos esperta. Eu tinha acabado de descobrir o que eu era, e isso parecia o fim do mundo. Quer dizer, eu tinha sido testada quando nasci como todo mundo, porque eles não tinham descoberto então? Eu coçava desesperadamente a pele queimada nas costas da minha mão em busca de uma resposta, mas o fato era que eu tinha, de repente, passado de apenas uma garota normal do Setor 3, cujas únicas peculiaridades era ser um pouco solitária e ter uma mãe negligente para ser da pior espécie de criminoso que existe o único mundo que já conheci.
No começo eu acreditei que era algo como uma gripe, que logo passaria e eu voltaria a ser normal, desde que eu não me alimentasse de eletricidade novamente. Não demorou nada para eu ver que isso era bobagem. Aos poucos, a visita ao refeitório do setor 3, que, mesmo nunca tendo sido lá muita agradável, fora se transformando em tortura. A comida já não alimentava, e logo eu me via tentando me alimentar até da energia estática que ficava na tela da televisão. Logo eu comecei a parecer cadavérica, e já não conseguia mais dormir. Toda a minha vida passou a girar em torno da eletricidade.
Eu nunca tinha ido bem na escola, mas até isso eu consegui piorar. Claro que minha mãe nunca percebeu nada, pois como de costume estava sempre envolvida demais em seu alpinismo social. No limite do meu desespero, resolvi tentar ir até o mercado, com todo o pouco de dinheiro que eu tinha juntado tentar comprar uma pilha que fosse. Mas é claro que eu não tinha a mínima ideia de onde começar.
Foi aí que Rob me encontrou.
Ele tinha me reconhecido de algumas vezes que a minha mãe foi obrigada me levar junto para o trabalho. Rob nunca me perguntou nada. Ele simplesmente sabia o que eu era, e logo eu estava na loja dele, que ele havia aberto há pouco tempo. Hoje em dia, talvez eu tivesse pensado duas vezes antes de acompanhá-lo. Quer dizer, ele sempre teve uma aparência um pouco estranha, com as orelhas cobertas de piercings, rosto fino e o cabelo descolorido. Aliás, seus companheiros de negócios o chamam de Ruivo, o que eu nunca entendi, pois por trás de toda a água oxigenada ele tem o cabelo preto. Mas, da mesma maneira que ele nunca comenta sobre sua vida pessoal ou sobre a família que ele se recusa a manter contato, ele nunca me explicou a origem do apelido. De qualquer maneira, no momento o desespero falou mais alto.
Ele apenas sorriu e me ofereceu um objeto, que eu demorei alguns segundos para entender que era uma bateria. Depois disso, ele comentou, como se estivesse comentando a última fofoca do Mercado, que precisava de uma assistente para a loja. Eu ainda estava meio tonta depois de finalmente poder me alimentar depois de semanas de privação, mas aceitei na hora. Por algum motivo eu confiava nele, mesmo que ele obviamente estivesse envolvido em atividades criminosas.
Rob não era um Filho da Supernova, isso eu não demorei para perceber. Ele apenas mantinha a oficina como fachada para ser fornecedor dos traficantes. Mesmo assim, foi ele que me ensinou a hackear os sistemas de segurança para poder abrir terminais de energia sem ser detectada. Ele também me ensinou como enganar o teste que o Arco aplica em todos os cidadãos do Complexo para descobrir se são ou não Supernovas. As duas queimaduras a mais nas costas da minha mão são a lembrança constante de como esse conhecimento salvou a minha vida.
Até o ano passado trabalhei aqui todos os dias após a escola. Ir à escola e estar no meu compartimento com minha mãe podiam ser uma tortura, mas estar na loja era a melhor parte do meu dia. Pela primeira vez na vida eu me sentia em casa. Quando fiz dezesseis, como todos no Complexo, teria que escolher um emprego, e desde então pude trabalhar aqui o dia inteiro. Tenho que admitir que a minha poderia ter sido bem pior.
- E nesse tempo todo você alguma vez viu o Arco batendo nessa porta? – Rob continuou, me trazendo de volta à realidade. Balancei a cabeça, agora negativamente. Ele prosseguiu. – Isso não é sorte. Eu aposto com você que eles sabem que a gente não faz só consertos de TV aqui. Mas eles sabem que nós somos peixes pequenos, que se eles querem pegar os Supernovas eles tem que ir atrás dos traficantes, então é bom pra eles deixarem a gente continuar no negócio. Mas de qualquer jeito, eu nunca, jamais chamei a atenção pro meu negócio. Você sabe o porquê? O povo odeia os Supernovas. São eles que eu temo. O dia que correr o boato sobre o que a gente faz, não vai demorar pra ter uma multidão nessa porta pra nos linchar. Aí sim que o Arco vai ter que tomar uma atitude, e sinto muito Ellie, mas se isso chegar a acontecer quem vai levar a pior é você.
Engoli em seco. Eu sabia de tudo isso, é claro, mas ouvir isso de Rob é como levar um soco na boca do estômago. Desvio o olhar, pela primeira vez envergonhada pela minha inconsequência. Depois da centésima vez roubando energia sem ser pega, é fácil cair no excesso de confiança.
Rob delicadamente pega no meu queixo e me força a olhar para ele, no meio daqueles olhos verdes pintados de castanho. Se ele não fosse meu chefe, eu até acharia esses olhos bem atraentes.
- Eu sei que você acha que eu só me importo com você no quesito da inconveniência que seria treinar outro assistente. Bom e seria bem inconveniente mesmo – ele disse, com um sorriso que seus olhos não acompanharam – Mas eu falo de coração que eu não quero que o Arco a leve para esse buraco que eles levam todos do seu tipo e faze o que quer que eles façam com vocês.
Eu sinto meus olhos arderem um pouco. Droga, ele está conseguindo mesmo me fazer sentir culpada.
- Sabe o que você precisa? Ter algo com o que se importar. Aquela vadia que te criou não te ensinou nada, mas eu ainda acho que você pode ter um pouco de felicidade na vida. Sabe, você devia sair por aí, ver gente, arrumar amigos de verdade. Se apaixonar. Isso é falta de sexo, você sabe?
Tive que dar um tapa bem dado na lateral do braço dele, enquanto fazia o equivalente sonoro a revirar os olhos.
- Você tá se oferecendo, é?
- Claro, se você crescesse uns vinte centímetros, criasse barba e se magicamente aparecesse mais alguma coisa no meio das suas pernas, quem sabe? Peito você já não tem mesmo, né.
- HA-HA – eu disse largando a minha melhor imitação de risada sarcástica, o que fez com que fosse a vez de Rob começar a rir histericamente. Fiquei aliviada pelo aparente fim do sermão dele.- Bom, quem sabe? Talvez os Supernovas virem hermafroditas depois dos vinte.

- Ellie, você não tem jeito mesmo.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Capítulo 2 - O legado de uma estrela

O nome dela era Carinae.
Era um nome bonito, se você quer saber a minha opinião. Por algum motivo ele sempre me relembra uma mulher de olhos azuis, ainda encantada com o primeiro amor, aquele breve momento antes da primeira decepção.
Mas ela não era nenhuma mulher. Era uma estrela.
E eu digo no passado porque ela morreu. E, quando morreu, causou toda essa confusão em que estamos.
A sete mil e quinhentos anos-luz de distância (e isso é muito longe, mesmo), na nébula de Carina, ficava uma estrela chamada Eta Carinae. Por milhões e milhões de anos, ela brilhou, e brilhou muito mais que uma estrela normal, bom, pois ela era muito maior que uma estrela, digamos, normal. Mas não pense que a vida de uma estrela é só ficar lá, posando pra telescópios e coisa e tal. Nada disso. A vida de uma estrela é uma constante luta contra si mesma. Fusão nuclear e gravidade brigam com todas as forças para ver quem tem mais poder. Mas o destino a que todas as grande estrelas estão condenadas é que, no fim, a gravidade sempre vence.
E a estrela morre, ela vira uma Supernova.
Apesar de ser uma explosão bem grande – o que dá num funeral pra lá de animado -, não seria o suficiente para atingir um planeta que estivesse tão distante como o nosso. Mas isso não é tudo, claro. Existe também a emissão de raios Gama, que são um feixe de energia expelida dos polos magnéticos da estrela. Esses sim chegam bem longe. Eles correm como uma bala perdida na velocidade da luz, procurando por sua próxima vitima.
E essa arma estava apontada justamente para a Terra.
Pouca gente aqui no Complexo, depois de oitenta anos, estava viva quando houve o Cataclismo. Mesmo assim, aqui e ali dá pra ouvir alguém relembrando, ou mesmo recontando histórias de seus pais e avós. Cada um tem uma versão diferente, mas todas as historias tem algo em comum: não houve nenhum aviso. Uma noite simplesmente tudo se acendeu, e foi o fim.
Não foi aquela coisa cinematográfica, pra falar a verdade. A terra na tremeu, o oceano não se levantou. Só parecia que Deus tinha ligado o interruptor do universo. Bom, claro, no primeiro impacto todos os sistemas elétricos e eletrônicos fritaram, mas em geral não foi nenhuma grande catástrofe.
Muita gente até achou que era um milagre, o juízo final, a volta do messias e coisa e tal. Saiam as ruas rezando ao seu deus, seja ele qual fosse. Deviam ter rezado por uma morte rápida, pois os meses que se seguiram foram uma boa estadia no inferno.
Começou que a atmosfera foi quase toda destruída. A camada de ozônio foi fritada de imediato, e a radiação fez com que o nitrogênio reagisse formando uma poeira que encobriu todo o planeta. Não demorou muito para que tudo o que existisse virasse um deserto congelado.
Quem sobreviveu mais de alguns dias, e que não morreu por causa da radiação, ou morreu de frio, ou de fome, ou ainda morreu na mãos de outros sobreviventes no caos social que se seguiu. Alguns tiveram sorte e foram resgatados pelo exército e levados para o Complexo, que tinha sido construído no caso de uma guerra nuclear estourasse.
Seria uma boa historia de sobrevivência, da humanidade que sempre dá um jeito de continuar. Seria.
Pois foi aí também que surgiram os Filhos da Supernova.
Ninguém sabe exatamente quem deu esse nome a eles, mas até onde eu saiba, nós éramos (nós somos, aliás) como todo e qualquer humano, Tirando o fato de que nos alimentamos de energia pura, é claro. Mas no geral, temos duas pernas, bois braços e até um cérebro que só pensa besteira, como todos os outros.
Mas aparentemente, para todos os fins, nós somos os aliens do mal que trouxeram o apocalipse na bagagem.
Tinha sido nos primeiros dia depois do Cataclismo que os primeiros foram encontrados. Enquanto as pessoas que não tinham abrigo sucumbiam aos montes à radiação, eles sobreviveram. No geral, eram crianças de um a quatro anos, geralmente encontradas por soldados chorando junto aos corpos de seus pais. Mas um detalhe: eles brilhavam, brilhavam como um sinal de neon numa noite escura, brilhavam como um holofote em sua potência máxima.
Os primeiros tempos no Complexo tinham sido difíceis. Pouca água, pouco alimento, pouco ar. E pouca energia também. Logo os Filhos da Supernova foram acusados de estarem tirando os recursos dos “humanos de verdade”, e sua fama de insaciáveis encrenqueiros não ajudava em nada. Com o tempo e com as tensões aumentando, o Governo decidiu que eles deveriam ser mandados para um outro lugar, que ficou conhecido como Estrela Negra, em uma localização secreta. Mas isso não bastou para elimina-los. Mais filhos da Supernova, por algum motivo, continuaram a aparecer espontaneamente. Aí foi que toda a perseguição começou, e chegamos aonde estamos agora.

                Tudo por causa de uma estrela, e o dia em que ela achou que devia morrer.