- Você tem
livros? – Aggi me pergunta enquanto descemos as escadas do Setor 3. Nos cinco
minutos desde que fui relegada a ficar de babá e Aggi e Tom, ela já me
interrogou sobre quase tudo em minha vida. Eu tive que usar todo o meu arsenal
de repostas do tipo “sair pela tangente”.
Quantos anos você tem? Dezessete.
Você tem namorado? Não.
Você vai à escola? Não mais.
No que você trabalha? Com eletrônicos.
Como o seu cabelo ficou dessa cor? Sempre
foi dessa cor.
Você gosta de histórias de princesa? Credo,
nem pensar!
Qual a sua cor preferida? No momento,
roxo.
Sério, a
quantidade que o irmão dela não fala, ela consegue cobrir. Dez vezes mais.
- Não – eu
respondo – eles são inflamáveis. – e me concentro em descer as escadas,
tentando não rolar para baixo até o refeitório, porque minha cabeça está
girando, girando... Bom, a culpa deve ter sido minha, por achar que esse dia
não tinha como piorar. Sempre pode piorar. Fato.
E tinha
piorado muito no instante em que minha mãe pôs os seus pés embalados em salto
alto (antiguidades raras, custaram uma fortuna) dentro do nosso compartimento.
Quem estivesse assistindo, nunca diria que estava assistindo o reencontro de
duas irmãs, mas sim de duas velhas inimigas de infância que costumavam puxar os
cabelos uma da outra. Naquele momento, tenho que ser sincera, preferiria a
companhia de um esquadrão do Arco.
- Arianna –
ela disse friamente, depois de se recuperar do choque de encontrar a irmã em
sua sala. Eu pude notar que ela estava apertando as unhas contras as palmas das
mãos; suponho que era no intuito de evitar que ela fossem parar no rosto da
irmã.
- Laura –
Arianna respondeu, mas sei a frieza com que ouviu seu próprio nome. – Acho que
você deve saber porque eu estou aqui.
- Não, não
sei. Porque você não me lembra mesmo?
Arianna já
estava pronta para responder, mas mudou de ideia e olhou em minha direção.
Laura entendeu a deixa antes de mim, e logo já foi se dirigindo a mim, a voz um
pouco mais doce que o habitual.
- Ellie,
querida- ela disse. Querida! Essa eu
nunca tinha ouvido na vida. –você poderia levar essas... crianças para dar um
passeio? – ela disse crianças com a mesma entonação que se referiria a um rato,
se bem que ratos e crianças existem em abundancia no Complexo, e minha mãe
parece ter o mesmo tipo de carinho com os dois.
Eu queria
protestar. Queria ficar lá e saber qual era a causa dessa confusão toda. Mas
Laura consegue ser mais assustadora quando tenta ser minimamente mais afável.
No fim até agradeci por sair dali.
E então logo
eu estava rumando ao refeitório do Setor 3, acompanhada de duas crianças, uma sepucralmente
quieta e outra que não sabia calar a boca. Aggi havia ficado animada em
conhecer o resto do setor, mas Tom fez um protesto silencioso, se agarrando ao
casaco da mãe. Porém, ela deve ter feito algum tipo de feitiço, pois bastou
algumas poucas palavras sussurradas no ouvido dele para que ele cedesse e me
acompanhasse.
E foi aí que
começou o interrogatório.
- O que é
“inflamável”? – Aggi me pergunta agora, me trazendo de volta à realidade.
Cruzes! Ela parece uma metralhadora de perguntas.
- Que pega
fogo.
- Ah, mas
então eles deviam fazer uns que não pegam fogo.
Eu exalo todo
o ar dos meus pulmões. Nunca fui muito chegada a crianças, e isso certamente não
está ajudando.
- Não há mais
árvores, não é? Não tem como fazer mais papel.
Eu
pessoalmente nunca vi um livro na vida. Os que se salvaram depois do Cataclismo
foram recolhidos pelo governo, perigo de incêndio, esse tipo de desculpa. Pra
falar a verdade, eles são difíceis de achar até no mercado negro, e olha que eu
já vi de tudo por lá. Nem sequer na escola os tínhamos, onde a maioria das
lições tinham que ser decoradas oralmente.Nada disso nunca me pareceu estranho,
mas ter uma pirralha de seis anos me interrogando por causa de livros com
certeza é.
Sei que vou me
arrepender disso, mas...
- Por que,
você tem livros lá no Setor 4, é? – é a minha vez de fazer perguntas.
Aggi chega
mais perto e fala mais baixo.
- Não conta
pra ninguém, - ela diz, com um sorrisinho malicioso – Mas eu tenho um monte!
Ou ela está
mentindo ou essa família é bem menos comum do que eu pensei... Bom, talvez esse
passeio possa render algumas informações, afinal.
Eu já havia
engatilhado um milhão de perguntas sobre a suposta biblioteca de Aggi, mas na
hora de dispará-las me dei conta que estávamos já à frente das grandes portas
duplas de aço do refeitório.
A essa hora o
lugar já estava quase vazio, com um ou outro gato pingado no meio das grandes
mesas cercadas de bancos de alumínio que compõe o salão cavernoso do
refeitório. Apontei para uma mesa afastada e instrui a Aggi que me esperasse
por lá. Ela pegou a mão de Tom, que não surpreendentemente, emitiu apenas
silêncio. Nem seus passos faziam qualquer barulho. Ele parecia um fantasma
assustado com o mundo dos vivos.
Há um balcão
de metal e vidro em um dos cantos do refeitório. Dentro dele estão expostas
toda a variedade de comida: proteína rosa, proteína amarela. E um mingau azul.
Advinha o que é? Proteína. Quer dizer, a gente chama de proteína, mas na
verdade é um PBN: Preparado Balanceado Nutricionalmente, composto de proteínas,
carboidratos e a dose necessária de vitaminas.
Também
chamamos às vezes gororoba.
A rosa é a
mais cara porque é a mais doce, portanto o gosto é o menos pior. De qualquer
jeito, é terrível. Bom, não é à toa que a maioria das pessoas aqui estão
eternamente de mal com a vida, eu é que não queria ter que depender disso. Se
bem que eu me forço a comer do mesmo jeito, sabe, para manter as aparências.
E o maior
exemplo de estar de mal coma vida está bem na minha frente, empunhando uma
concha como se empunhasse uma espada. Bom, aquela concha é de fato a arma dela.
O nome dela é Harriet, e nos dez anos que a vejo servir comida aqui, ela nunca
deu um sorriso. Ela tem uma verruga na bochecha esquerda de onde cresce um
único e longo pelo preto. Ele é meio que uma caricatura de uma bruxa de
historias infantis, só que essa aí serve um negócio intragável ao invés de
viver em uma casa de doces.
Não há fila a
essa hora, o que é uma vantagem. Agora a desvantagem: quando chego um pouco
mais perto, noto que há apenas uma grande panela no balcão, e ela está cheio de
uma papa azul. Ninguém merece o azul.
A velha
Harriet deve ter notado a expressão de desdém no meu rosto, pois logo ouço a
sua voz rouca ecoar nos meus ouvidos.
- Vai querer
ou vai só ficar admirando?
- Três, - eu
murmuro, quase inaudivelmente. Ela pega três tigelas e as enche sem cerimônia,
enquanto eu tento evitar olhar em seus olhos, em sua verruga, ou no pelo da
verruga...
Ela passa a
bandeja com as tigelas por cima do balcão com um baque, e já está apontando uma
arma na minha direção. Bom, não uma arma de verdade, mas uma leitora de
códigos, e eu lhe estendo o meu pulso esquerdo, onde está a minha pulseira.
As pulseiras
são como a sua identidade aqui no Complexo. Elas possuem informações sobre quem
você é, identificam o Setor de onde você veio e são também a moeda corrente por
aqui. É claro que existe uma moeda “paralela”, que chamamos de Ferro. Porque
esse nome, eu não sei, já que as moedas são de Níquel.
A máquina faz
um bipe quando lê as informações na minha pulseira, e a refeição está paga, e
imediatamente eu já estou a caminho da mesa onde duas crianças me esperam.
Coloco
a bandeja com três tigelas de uma gosma turquesa na mesa, e me sento, Aggi e
Tom estão sentados do outro lado da mesa. A menina pega uma das tigelas e
oferece ao irmão, que não pareceu muito feliz ao ver a comida em sua frente.
- Ele não
gosta muito da azul. – Aggi me explica.
- Desculpa,
garoto, mas é só o que tinha. – eu digo para Tom. Ele não responde, nem parece
reagir a nada do que eu faça ou diga. – Ele pode me escutar? – eu pergunto,
dessa vez para a irmã dele.
- Ele escuta
sim. Só não gosta de falar. – ela responde.
- Vocês já o
levaram a um médico?
- Já, mas ele
disse que não sabe qual o problema dele. Papai diz que vai sumir com o tempo,
mas que até lá eu tenho que cuidar dele.
- Porque você
é a mais velha.
- Não, eu sou
a mais nova.
Acho que eu
não devo ter parecido muito convencida, porque ela logo emendou:
- Mas só por
sete minutos.
- Ah, vocês
são gêmeos.
- É. Papai
disse que nós somos especiais por causa disso.
De uma forma
ou de outra, Aggi sempre consegue trazer à tona o assunte de seu pai. Talvez
seja aí que eu deva investigar, ignorando a ironia de agora ser eu a fazer
todas as perguntas.Me certifico que não há ninguém perto o suficiente para
escutar a conversa. Não há, mas mesmo assim abaixo o tom de minha voz.
- E o seu pai,
ele leu isso em um daqueles livros que você me falou?
Aggi engole
uma colherada da proteína azul, e me olha nos fundo dos olhos.
- Não sei, mas
ele mexe bastante nos livros.
- São livros
sobre o que?
- Histórias.
- Histórias?
- É,
histórias. Às vezes ele lê algumas para mim e o Tom antes de dormir. Ele diz
que são todos de histórias.
- E que tipo
de histórias?
- Sobre
aventuras, princesas, unicórnios e bruxos do mal, esse tipo de coisa. Mas ele
disse que é segredo,que eu não posso contar pra ninguém.
- Mas você
está contando para mim.
Ela pareceu
intrigada pela primeira vez. Talvez não tivesse feito a relação que o fato de
guardar segredo envolvia não falar sobre ele em primeiro lugar.
- Mas você é
confiável.
Esse com
certeza é um adjetivo que eu nunca apliquei a mim mesma. Bom, talvez no sentido
daquela velha camaradagem compulsória entre criminosos, mas eu não chamaria
isso de uma confiança verdadeira.
- Como você
sabe que eu sou confiável?
Aggi novamente
prende o meu olhar, como se pudesse ver no fundo da minha alma. Definitivamente
essa menina é assustadora.
- Eu só sei.
Eu sempre sei. – ela diz, e volta a se concentrar na proteína. Ao lado dela,
Tom apenas brinca com a colher no negocio, e pela primeira vez parece que ele
está se divertindo. Bom, ele achou um uso bem melhor para o negocio azul do que
come-lo, tenho que reconhecer. É aí que eu percebo que nem toquei na minha
tigela, e imediatamente a puxo e forço uma colherada.
- E o seu pai?
Qual é o nome dele? – eu pergunto a Aggi.
- Porque você
quer saber?
- Bom, eu
trabalho em uma eletrônica. Talvez eu o tenha visto na loja. Ele vai muito ao
Mercado?
- Não, ele
manda os amigos dele no lugar.
- Ele tem
muitos amigos?
- Tem, mas ele
é meio que um chefe deles.
- Hum,e como
esses amigos o chamam?
- Faraday.
O nome não me
é estranho, e por alguns momentos me perco na minha memória atrás do nome
fugitivo. Onde eu já ouvi esse nome antes? Aliás, não um nome, mas um codinome,
já que é óbvio que é um nome inventado usado pelos traficantes. Eles se acham
muito refinados por usarem nomes de cientistas do passado.
E então tudo
faz sentido.
Oh, com
certeza Rob e eu teremos uma conversa muito interessante amanhã.